O Fado - José Malhoa 1910
(continuação)
A aragem do final de tarde gelou-me o corpo.
Lisboa estava mais fria ou seria o meu ser que a sentia gelada.
Estávamos no final do Verão, início de noite, logo não podia estar gelo.
A cidade nunca me fascinara. Gente, barulho, movimento a mais.
E assim se encontrava neste momento.
À medida que a carrinha do sr. Meireles avançava, observava toda a azáfama citadina; os poucos carros que passavam lado a lado, as senhoras apressadas nas compras, os senhores com o seu passo calmo, fumando os seus charutos, alguns rapazes e raparigas com as suas fardas bem aprumadas.
- Sr. Meireles que fardas são as daqueles moços?
- São as da Mocidade Portuguesa, nunca ouviu falar?
Já tinha ouvido falar. Embora as notícias não chegassem ao mesmo tempo que os acontecimentos na capital, mas sempre se ouvia alguma coisa na terra.
- Sim, sim.
- Onde quer que o deixe?
- Onde quiser. Não tenho local fixo para ficar.
- Mas porque se veio embora?
- Desgostos, sr.Meireles, desgostos.
Não queria voltar a pensar naquela mulher, naquele sítio. Por mais que lhe custasse, sabia que não voltaria à aldeia.
- Pode ficar aqui?
- Claro que sim, está perfeito.
Desci, e fiquei a ver a carrinha da biblioteca itinerante afastar-se.
O cheiro a mar era intenso. Embora não o visse, não deveria estar longe.
Para que lado ir? Uma incógnita que deixou de ser ao ouvir o som de uma guitarra. Uma guitarra portuguesa, a ser tocada com uma perfeição esplêndida. Os acordes, o dedilhar pelas cordas, tudo tocado de uma maneira tão intensa, parecia alguém a chorar, implorar.
A medo fui ao encontro de tal melodia. Vinha de uma casa. As portas abertas deixavam o som sair com nitidez. Não tinha medo. Embora a noite já fosse bem alta, não tinha receio de estar ali. A música parou. O som de aplausos faziam-se agora ouvir. Uma casa de espectáculos. Como seria? Nunca tinha visto uma, embora soubesse que haviam muitas em Lisboa, algumas clandestinas. Os tempos não estavam fáceis. A guerra no Ultramar, a PIDE/DGS e as suas investidas dia após dia de violência, desumanidade e espesinhamento para impedir os Portugueses do livre exercício dos direitos cívicos, levaram muitos portugueses a fugir, a viver oprimidos.
-Pode entrar!
-Não, deixe estar. Vim aqui ter por causa da música. Nunca tinha ouvido tocar assim tão bem.
-Entre um pouco. Já comeu alguma coisa?
-Não.
-Venha. Ofereço-lhe uma sopa.
-Eu tenho dinheiro. - fui dizendo enquanto descia as escadas, que levavam à sala onde mais pessoas estavam reunidas. Ao fundo, um pequeno palco, onde estavam dois homens de fato escuro sentados, cada um com a sua guitarra. No meio deles, uma moça lindíssima, com um xaile negro pelos ombros. As mesas estavam todas ocupadas. Atravessámos a sala e entrámos num compartimento onde um senhora se encontrava ao fogão e duas moças mais novas preparavam os pratos que iam servindo. Que cheiro tão bom!!
-Mãe, encontrei este amigo à porta. Ainda há por ai um prato de sopa?
-Sempre, meu filho!
-Obrigado, senhora. Quando olhei, a senhora mais velha, estava à minha frente. O rosto um pouco amassado, negro. Até as inúmeras rugas, pareciam quase não existir.
-A senhora está bem?
-Não se preocupe filho, mais uma visita de uns amigos. Gostam muito de me visitar de tempos a tempos.
Sentei-me à mesa. Não conseguia deixar de olhar para aquela senhora que não tinha menos idade que a minha mãe. Os olhos ficaram molhados, uma dor intensa atingiu o meu peito. O que seria que aquela senhora teria feito, para merecer tal castigo? Visita habitual? Comi em silêncio.
-É a vida, meu filho! Nada fiz de mal. Tenho que ter a porta aberta para ganhar dinheiro. Não posso escolher quem aqui entra. Quando chegam, partem tudo. Levam dois ou três, muitas vezes escolhidos no momento, homens, mulheres, não interessa. Não sabemos para onde vamos. Ficamos horas, dias, depende. Uns voltam, outros. Bem outros, nem sabemos.
-Minha senhora, a senhora tem a idade da minha mãe. Que mal faz? Essa gente não tem mãe?
-Isso não lhes interessa. Eles querem silenciar, quem se lhes atravessa no caminho. Tem onde ficar esta noite?
-Não. Acabei de chegar da aldeia.
-Fique connosco. Amanhã logo se verá. Tem um quartinho atrás daquela porta. Pode lá pernoitar.
-Obrigado. Muito obrigado. Então assim aproveito e vou descansar. A viagem foi desgastante. Mais uma vez, muito obrigada.
Levantei-me, peguei no prato e talher, coloquei em cima da bancada e ao passar pela senhora, dei-lhe um beijo de boa noite. O beijo que teria dado à minha mãe.
-Dorme bem, meu filho!
-Igualmente minha mãe. E saí tão rápido para ela não ver as lágrimas que caíam pela minha face.
Deitei-me assim como estava. Fiquei a pensar na minha mãe, no meu pai, na minha vida e adormeci.
(continua)