quarta-feira, 22 de maio de 2013

Revista Plátano - O Conto



Envolta na Bruma

“-Vá lá Matilde, só desta vez!”
Mais uma vez as colegas a conspirar contra ela. Sempre a quererem arranjar-lhe namorado; o primo da vizinha, o amigo da prima, o irmão da senhora da loja de bijuteria, tantos que já lhes tinha perdido o conto. Eles bem se esforçavam para lhe agradar, mas não valia a pena. Ela não pensava encontrar o seu príncipe encantado assim.
Por vezes ela dizia-lhes: “…sem esperar, ele vai aparecer numa noite em que a bruma descer sobre a cidade, e quando o nosso olhar se encontrar, eu saberei!”, e as amigas riam com o discurso da paixão imaginária.
“-Está frio! Já viram como o tempo se está a pôr?”
“-No restaurante não está frio.”
“-Está bem! Está bem! Irei ter com vocês às 20h. Que aborrecidas!
Voltou-se para a janela e observou o tempo lá fora. O dia cinzento, por vezes negro como breu, o nevoeiro intenso e a chuva miudinha que caía desde manhã. O vento soprava, por vezes forte, outras como um toque suave de uma pena gelada. Um dia de Inverno.
“ Um Inverno como não se via há muito na cidade. Pelo menos era o que ouvia aos mais velhos sentados no Jardim do Tarro, ou mesmo àqueles que a meio da tarde bebericavam o café, um bagaço ou um copo de vinho, no café.
Perde-se a ver a paisagem. A sua mente vai além do que o parque de estacionamento em frente, ou o “muro” de prédios que bloqueiam a sua visão. Por vezes parte para longe. A sua alma viaja pelo tempo, levando-a por sítios onde nunca esteve, fazendo-a sorrir. Outras vezes a viagem é por perto, com pessoas do dia-a-dia, conversas que se interligam em espaços confusos.
“-Até logo!” – a voz da colega que se despede, acorda-a dos seus pensamentos.
“-Sim. Desculpa. Até logo!”
Olha em frente e embrenha-se no trabalho até à hora de saída.
Ainda chove quando sai. Abotoa o casaco, segura na mala e abre a porta. A aragem fria que lhe toca a face, enregela-a, assim como as pingas que molham o rosto. A seu lado, alguns colegas apressam o passo, outros debaixo dos guardas chuvas e olham-na espantados. Desde sempre gostara de andar à chuva, e de sentir as gotas cair na face, escorrendo, gelada.
Ao sentar-se no carro, sorri.
“-Talvez ligue a desmarcar o encontro.”
Um sentimento estranho percorreu o seu corpo e nesse momento o seu pensamento voa para longe. Ouve o som de uns sinos e alguém chamar  “Vicente”. O rádio acende e a música acorda-a daquele sonho. “-Que estranho!”
Ao início da noite ainda continua a chover, a neblina está ainda mais cerrada, não deixando ver tão bem a estrada em frente. Vai devagar. Não há lugar no estacionamento perto do restaurante, a solução encontra-a perto da antiga moagem e segue a pé.
Mais uma vez o jantar não correra bem. Quer dizer, para ela corre sempre bem, por vezes chega a ter pena dos esforços e figuras tristes que os pretensos pretendentes fazem.
“-Não quer companhia até ao carro?”
“-Não é preciso o carro está aqui perto.”
“-Não te vamos deixar ir sozinha.”
“-Vou a correr, não se preocupem. Está mesmo aqui ao lado e ainda é cedo.”
Depois da despedida sai sozinha do restaurante.
Continua a chover e a bruma é intensa. A famosa Rua Direita com as suas luzes fantasmagóricas assustam qualquer um. Uma rua tão diferente da que foi noutros tempos. O comércio resistente a esta crise com tanta dificuldade de seguir em frente, em arranjar chamariz aos lagóias de carteira vazia.
Encontra-se tão embrenhada nos pensamentos que nem repara que, um pouco atrás, três jovens conversam sobre a sua passagem e a seguem. Um pontapé numa lata denuncia os perseguidores, fazendo com que Matilde se volte devagar e se aperceba do que se passa.
“-Para que lado vou? Se seguir para baixo até à Fonte Nova, eles conseguem alcançar-me antes que chegue ao carro. Se ligar a pedir ajuda, já não chegam a tempo.”
Encontrava-se embrenhada nestes pensamentos, quando o seu olhar encontra o Antigo Palacete dos Condes de Castelo Branco, onde actualmente está o museu de Tapeçaria Guy Fino. Pensa logo no novo jardim junto à muralha e que se correr um pouco chegará rapidamente ao carro.
O corpo vira-se em direção ao Palacete, os seus passos aceleram um pouco. Sente o frio na sua face, a neblina cerrada envolve-a como se fosse envolvida por um abraço protector. Ao voltar-se para o lado do jardim, o seu olhar “morre” no portão fechado.
“-Faz com que esteja aberto! Por favor!”. Todo o seu corpo desfalece quando as mãos tentam empurrar o portão e este não abre. Tacteia o portão, tentando encontrar a fechadura, a tranca. O rosto encosta-se às grades tentando passar através delas. Atrás, ouve os passos dos seus perseguidores, agora mais perto.
O nevoeiro cerrado não a deixa distinguir quem se aproxima, mas consegue ouvir as vozes, os risos e os passos cada vez mais perto. Volta-se para eles, aguardando-os. O seu corpo tenta fundir-se com o portão. Lágrimas começam a escorrer pelo seu rosto. Cerra os olhos. Não quer nem ver quem a persegue.
De repente, sente o corpo, sem o apoio do portão, e ser puxado por alguém. Alguém a abraça suavemente. Não consegue abrir os olhos, não consegue gritar. O abraço aquece o seu corpo gelado, fazendo-a acalmar.
“-Será que morri?” – pensa, um pouco confusa.
Aos poucos abre os olhos e em frente a si, encontra os três homens que a perseguiam. O seu corpo estremece com o medo. Os braços que a abraçam, apertam-na um pouco, como se quisessem dizer para ficar quieta.
“-Para onde foi? É impossível ter-se evaporado.”
“-O portão está fechado. Por aqui ninguém passou. Será que a viste vir para este lado? Com o nevoeiro que está podemos ter-nos confundido.”
“-Vamos embora!”
Como era possível estar frente e frente com os seus perseguidores e eles não a verem? Como teria passado pelo portão fechado?
Viu os perseguidores voltarem-se e seguirem pelo caminho que ela mesmo tinha feito. Gradualmente foi ouvindo os passos cada vez mais longe. Agora chegava a hora de ver quem a segurava. O seu coração bombeava o sangue tão rápido, que sentia esse batimento forte bem perto na sua garganta. O corpo estava sem força, não sabia o que ia encontrar e o medo tinha-a paralisado.
O abraço forte que a segurava, foi-se despegando lentamente. Sentiu alguém atrás de si. Tinha tanto medo de se voltar.
“-Nada temei, minha senhora” – o som daquelas palavras fizeram o seu corpo acalmar e aos poucos o medo começou a passar. Lentamente, voltou-se.
Não queria acreditar no que se encontrava à sua frente. Um homem, isso tinha a certeza pelo aspecto da barba por fazer. Um homem vestido de guerreiro, como se o Carnaval ainda não tivesse acabado. A roupa era de couro, reforçada por placas metálicas, brafoneiras e caneleiras e um capuz de malha metálica. Na mão um escudo circular de madeira, também revestido com placas de ferro e, para completar a indumentária, punhais e outras armas de que nem sabia o nome. Neste momento não sabia muito bem se estaria em segurança. Recuou um pouco.
“-Quem és?” – perguntou, a medo.
“-O meu nome é D. Vicente de Barbosa, filho de D. Fernão Pires de Barbosa, tenente de Vizela, nobre ao serviço de meu senhor el rei D. Dinis, e do seu irmão D. Afonso, senhor de Portalegre minha senhora.”
“-O quê?”- de certeza que tinha morrido e ido para um lugar entre o céu e o inferno. Começou a andar de um lado para ou outro, sem saber se assustada pela presença de estranha criatura, se por não saber o que lhe teria acontecido. O seu pensamento recuou um pouco e visualizou todo o trajecto desde a saída do restaurante até ao portão.
“-O portão!”
Encaminhou-se para ele e encontrou-o fechado. Como teria ela passado por ele? Continuava a chover. O céu escuro e o nevoeiro que descia pela encosta da serra, dançavam com as luzes uma dança maravilhosa. D.Vicente encaminhou-a por umas escadas, passaram pelo passadiço no pequeníssimo lago e sentaram-se perto da fonte. Matilde começou a chorar.
 “-Como pode tão linda donzela deixar o espelho da alma mostrar seus segredos?” e sentou-se perto de Matilde.
O olhar dela subiu devagar até encontrar o olhar de D.Vicente. Um olhar meigo, calmo que transmitia segurança, um olhar que tocou o seu coração.
“-Nada temei, não vos vou fazer mal. Já há muitos anos que não falava com viv’alma, que não via ninguém, minha senhora.”
“-Esteve preso? E porque está vestido dessa maneira?”
“-Preso no tempo, preso por amor.”
Matilde sentiu o seu coração parar de bater por breves segundos. Aquele olhar ficou preso ao seu. Ali estava o seu príncipe encantado e como ela sempre disse, ele chegou numa noite em que a bruma desceu sobre a cidade.
“- Corria o ano de 1299, da graça de D. Dinis, El-Rei de Portugal e do Algarve. Meu pai encontrava-se ao serviço de D. Dinis e eu ao serviço de seu irmão D.Afonso, senhor de Portalegre. Eram poucos os nobres que lutavam ao lado de D.Dinis.”
“-Você está a brincar, não está?”
“-Minha senhora, não ouso enganar vossa senhoria.”
“-O que estava a acontecer?”, pensou Matilde, preocupada, encaminhando-se para perto da muralha, sendo seguida por D.Vicente, que continuava a falar:
“-O cerco durava a algumas semanas. D. Afonso não queria deixar a vila, tinha o apoio do povo e de alguns nobres que D.Dinis não soube acarinhar, tratando-os arrogantemente, principalmente a nobreza de corte, deixando desaparecer as principais linhagens, não as substituindo, extinguindo as tenências, entre outras medidas pouco convencionais para um rei. Preocupava-se mais com os versos. Contudo D. Dinis foi recuperando quase todos os senhorios detidos por D. Afonso.”
Matilde olhava para D.Vicente enternecida. Por muito que lhe custasse acreditar no que estava a acontecer, quando D.Vicente segurou a sua mão e a encaminhou para a torre, o toque dessa mão era bem real.
“-Era daqui que avistava as tropas inimigas, muitos conhecidos, mas divididos nesta luta entre o seu rei e o seu senhor. Jurei defender o meu posto até à morte.”
“-Este cerco de que fala, durou quanto tempo?”
 Lembrou-se, um pouco envergonhada, que deveria ter prestado mais atenção nas aulas de História.
“-Cerca de cinco meses, ocupando grande parte do tempo quente. Portalegre sempre foi uma vila quente, até as noites.”
Ao chegarem no cimo da torre, avistaram o que a bruma deixava, descendo pela encosta da serra, envolvendo a cidade, passando pela Serra da Penha, indo morrer na zona da estação.
D.Vicente contemplava a cidade como se fosse a primeira vez, mas pelo que dizia já ali andava há 700 anos. Seria isso possível?
“-Foi então que vi a mais bela donzela de todo o reino. Tentando acabar novamente com a guerra entre os dois irmãos, como já tinha acontecido em Arronches, em 1286, D.Beatriz de Castela, mãe dos infantes, D.Isabel de Portugal e D. Maria de Castela chegam a Portalegre para falar com D. Afonso. Com D. Isabel de Portugal, vinha a Belíssima Sofia, uma de suas aias. Quando o nosso olhar se encontrou, o meu coração parou de bater, nunca tinha visto tão bela donzela. Com o meu ser, jurei-lhe amor eterno. Os poucos dias que nos encontrámos valeram por semanas, meses, anos. Enquanto D. Isabel, D.Beatriz e D.Maria falavam com D. Afonso tentando apaziguar a guerra entre os dois irmãos, eu mostrava a vila a tão bela donzela, Belíssima Sofia. A atalaia mais alta onde a vista se perdia no horizonte, o pôr do sol quente do Alentejo. Apaixonámo-nos perdidamente.”
Matilde não conseguia deixar de olhar para D.Vicente, imaginando-se num filme medieval.
“-No dia em que partiu, jurei-lhe que ao findar da batalha, iria ter com ela a Lisboa. Já tinha falado com meu senhor, D. Afonso, que me prometera dispensar uns dias. Desde que a tinha visto pela primeira vez, à noite escrevia-lhe pequenas cartas de amor. Guardei-as e no momento da despedida, entreguei-lhas. Ousei beijar suas mãos delicadas, formosas, jurando-lhe amor eterno, entre lágrimas.”
Suspirou, e continuou:
“Após a sua partida, viveram-se dias complicados, de grande tensão. D. Afonso recuou no decidido com sua mãe, e após uma longa batalha, as tropas de D. Dinis entraram em Portalegre. Ao saber disso, D.Afonso foge, deixando muitos dos seus defensores para trás. Não houve misericórdia para os inimigos. Jurando defender a minha torre, lutei por D. Afonso fugitivo. Vendo-me cercado, soube que ia morrer. Mesmo sendo meu pai um rico-homem ao serviço de D. Dinis, não houve misericórdia para o seu varão. Ao descer essas mesmas escadas (apontava para as escadas atrás deles), jurei amor eterno à Belíssima Sofia, e com as lágrimas a escorrer pelo meu rosto por saber que nunca mais veria tão bela donzela, lutei até a última adaga trespassar o meu corpo, tirando-me a vida.”
 D.Vicente calou-se, a sua mão deslizou para perto do seu coração, e uma mancha de sangue apareceu. O rosto voltou-se para o horizonte, e o silêncio desceu sobre eles, como a bruma.
Matilde visualizou toda a história na sua cabeça uma vez mais. Ali à sua frente, estava um homem com 700 anos que morreu a lutar no que acreditava, a lutar por um fugitivo, jurando amor eterno à sua donzela. Chegou-se perto de D.Vicente, a sua mão tocou a dele, olharam-se, abraçaram-se e ali ficaram no cimo da torre. Fechou os olhos. Ao longe ouviu uns sinos tocar.
“-Belíssima Sofia, eu sabia que te iria encontrar outra vez.”
Quando abriu os olhos, encontrava-se deitada em sua cama, enrolada nos lençóis. Sentou-se, olhando em redor. O relógio marcava 6:45h da manhã, hora de acordar para mais um dia de trabalho. Teria sido um sonho? Tinha sido tão real!
Após o duche, olhou-se no espelho e pensou em como seria a Belíssima Sofia. Pensou em D.Vicente.
No caminho para o serviço, ao passar pela torre, parou o carro e encaminhou-se para lá. Subiu as poucas escadas, olhou o pequeno jardim à direita, passou por baixo da muralha e encaminhou-se à torre. Ao subir os degraus, sentiu o coração bater mais forte, olhou em volta tentando ver D.Vicente. Teria sido um sonho?
Olhou novamente em todas as direções, sorriu e começou a descer as escadas. Ao chegar à última, olhou para o lado e encontrou um pedaço de papel preso entre as pedras, na parede. Pegou nele mas não conseguiu ver o que era. Correu até ao carro e seguiu para o serviço.
Ao entrar, deparou-se-lhe alguma confusão por causa da chegada no novo gestor.
“-Matilde, esqueceste-te!?”-
Tinha-se esquecido, mas agora já era tarde.
“-Não esqueci. Dormi mal e nem tive tempo de me arranjar.”
“-Deixa já não há nada a fazer.”
Colocou-se ao lado da colega para receber a comitiva da direção.
O seu olhar prendia-se no pedaço de papel que tinha retirado da torre. Nem deu pela chegada das chefias à sala. Quando a colega a beliscou para ela estar com atenção, o papel caiu no chão. Alguém se baixou para o apanhar e, quando o entrega a Matilde, ela fica pasmada com o olhar e a face que está à sua frente.
“-Creio que seja seu, Belíssima Matilde!”

7 comentários:

  1. Lindo amiga tal como te tinha dito no outro cantinho! grande nspiração.

    beijinho e uma flor

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  2. Parabéns pelo conto, pela publicação do mesmo.
    Beijinhos

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  3. Uma ficção tão real... a história a misturar-se com o sonho e a realidade. Amor, aventura, emoção...
    Parabéns!
    Raul

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  4. Muito bem menina. Agora só falta uma foto das minhas. Um beijinho de parabéns ! João Carvalho

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  5. Muito bem! Gostei de ler. A menina está de parabéns. : )

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  6. Com a correria dos últimos tempos, pude apenas hoje, deitar os olhos na escrita de uma mulher que aprendeu a voar com as próprias asas poéticas de suas noites.

    bj enorme e cheio de orgulho.

    bjs meus

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  7. Um estilo inconfundível!
    (Carlota, já lhe dei, acima, os parabéns, mas aqui é que ficam mesmo a calhar. Então, PARABÉNS!)

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