quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Um Delírio XXII

Júlio Pomar

(continuação)

Os poucos segundos que decorreram até o terceiro elemento chegar perto de mim, pareceram anos. Ouvia os passos cada vez mais perto, o arrojar das correntes pelo chão. "Que me iria acontecer? Eu não era quem eles pensavam."
O medo deixou-me imóvel, queria falar mas nenhum som saía da minha boca. O pânico sobre o que me estava prestes a acontecer deixou-me sem reacção.
Bruscamente senti uma mão agarrar fortemente o meu cabelo, levando a que a minha cabeça tombasse para trás. Neste momento os meus olhos entreabriram-se. Pouco conseguia distinguir a cara que se encontrava a milímetros de mim.
"-Então o passeio por Paris foi curto. As saudades da Ana Maria foram mais fortes?"
"-Eu, eu..."- imediatamente senti o meu corpo, empurrado pela mão que me segurava o cabelo, estatelar-se no chão. Um corpo sentou-se em cima de mim, torcendo-se as minhas mãos que continuavam presas atrás da cadeira. Uma dor irrompeu pelos meus braços que aos pouco fui deixando de sentir.
"-Eu não fiz nada! Não sei quem procuram. Cheguei ontem de uma aldeia. Eu não fiz nada!" - as lágrimas corriam incessantemente.
"-Vamos ter que te avivar a memória, meu caro. Vocês, ajudem aqui!"
Levantaram-me do chão, as algemas com pedaços de carne e sangue agarrados foram tiradas dos meus pulsos, que não sentia. Começaram a despir-me. Tentei lutar, debater-me mas em vão. Começaram os três a pontapear todo o meu corpo, senti algo mais duro bater-me ferozmente. Parei de resistir. Não valia a pena. Já nada valia a pena. Estava à mercê de três homens que nunca vira, não sabia o que queriam. Possivelmente nem sairia dali vivo. Devo ter desmaiado.
O meu pensamento encontrava-se no riacho perto da minha casa. Era Primavera, a água límpida deixava ver as pedras lisas e os peixes que por ali nadavam. Senti um movimento e olhei em volta. Um rosto sorria para mim. Teria chegado ao céu??
Um balde de água gelada fez-me despertar do meu sonho.
Não sentia o meu corpo.
Encontrava-me suspenso no meio de uma sala, um pouco diferente da anterior. Os pés encontravam-se presos por correias que me seguravam a um gancho preso no tecto. Os braços amarrados atrás das costas pendiam para baixo, fazendo doer os ombros. A cabeça praticamente não a sentia, os meus olhos estavam inchados, sentia-os inchados. Havia sangue no chão, meu. O meu corpo pingava, escorria. Para além deste vermelho vivo, havia um vermelho/acastanhado, seco, possivelmente de outros que passaram por ali antes de mim.
"-Vamos lá ver se agora te lembras."
"-Já disse, cheguei ontem da aldeia. Não sou quem vocês procuram."
"-Como sabes que procuramos alguém?"
Após esta frase, fui espancado violentamente toda a noite. Revezavam-se uns aos outros. Desmaiei algumas vezes, mas quando sentiam que voltava a mim, logo continuavam os espancamentos. Assim durou mais dois dias.
Não havia pedaço nenhum do meu corpo que não tivesse um golpe, uma nódoa negra, um rasgo de sangue. As dores eram insuportáveis.
Um cubículo em pedra bafienta era onde se encontrava o meu corpo, despido, despedaçado.
Os momentos em que desmaiava eram os mais felizes. Um rosto a sorrir, era tudo o que me lembrava.
Ouvi uns passos vir na minha direcção. "Ia começar tudo de novo", pensei.
Pegaram em mim, levaram-me para uma sala onde se encontravam dois homens. Nada disseram. Começaram a vestir-me e obrigaram-me a sentar na única cadeira que se encontrava na sala.
Colocara-me uma venda nos olhos. Levantaram-me da cadeira e aos tropeções e alguns pontapés fui seguindo por um corredor, empurraram-me por umas escadas abaixo, levantaram-me e senti que estava a entrar para um carro. "-Para onde me levariam?"
As portas fecharam-se. O carro arrancou. O sol! Era de dia! O sol queimava-me a pele. Ouvia as vozes na rua, o chilrear dos pássaros, os cheiros, o cheiro do mar. Onde estaria?
O carro parou. Tirara-me a venda. Os olhos ardiam com tanta claridade. Levei algum tempo a conseguir ver o que estava à minha frente. Sentia o cheiro do mar.
"-Vamos a andar, não temos o dia todo!"
Saí do carro. Encaminharam-me para um navio. "Um navio!"
"-Para onde vou? Eu tenho família. Têm que dizer aos meus pais para onde me levam!"
O cais encontrava-se cheio de gente, homens fardados que subiam por umas escadas onde se lia "Companhia Colonial de Navegação", para um enorme navio.
"-Para o teu bem, sobe essas escadas e não voltes tão cedo. Não eras quem pensávamos, e realmente nada sabias. Para não acabares como desaparecido, sobe as escadas e nunca mais voltes a Portugal."
"Nunca mais voltes a Portugal? Para onde ía? "
Peguei no saco que estava a meu lado, e encaminhei-me para as escadas. Não olhei para trás. A enorme armação de ferro que se encontrava à minha frente iria levar-me para longe, para longe dos meus pais, da minha aldeia, do meu país. O "Quanza" seria a minha liberdade? Para onde?
Subi as escadas calmamente. Alguns homens olhavam para mim e falavam baixo depois de passar. Nada me importava, só queria sair dali.
Quando levantou âncora, viam-se famílias inteiras a chorar, os que ficavam, os que partiam, tal como eu. Olhei para as pessoas que ficavam no cais e pensei nos meus pais. Como gostaria que ali estivessem.

(continua)

25 comentários:

  1. Intenso...um post verdadeiramente intenso...leva-nos a vestir a pele do protagonista e sentir cada muro, cada pontapé...sentindo o sangue escorrer pelo nosso corpo..

    Parabéns

    Beijocas

    Luis

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  2. Anónimo Luís.
    As tuas palavras fazem-me sorrir.
    Já tinha saudades de as ter por aqui.

    Beijo

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  3. ...silêncio...dor...liberdade?
    O mar oferece sempre uma fuga.

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  4. Carlota
    A ficção confude-se muita vez com a realidade.
    Sim vivemos num País e num mundo onde aconteceram e infelizmente ainda acontecem coisas destas.
    Conheci homens que estiveram , no Tarrafal, em Caxias, em Peniche em Angra do Heróismo. Um deles era o meu Avô. Tambem conheci homens que foram como na sua estória metidos à força em navios e enviados para o exílio em África.
    Muito realista.
    Beijo
    Rodrigo

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  5. Ana.
    O mar, o navio, para onde o levará??
    Devaneios meus que me estão a levar nem sei para onde...

    beijo

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  6. Rodrigo.
    Tudo o que estou a escrever é inventado por mim. Sei algumas coisas que se passaram pelo que estudei, por conhecer pessoas que viveram essas situações, mas que pouco gostam de falar do assunto.
    Este "Delírios" está a sair ao sabor do vento...

    Obrigado
    Beijo

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  7. "Este "Delírios" está a sair ao sabor do vento..."
    E o vento parece dos bons, pois a narrativa tem um balanço que só visto.
    Que grande energia se solta de si, Carlota!

    Beijo :)

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  8. AC.
    Estou a adorar escrever este "Delírios". E quando a inspiração está assim, é fácil deixar o pensamento voar, e os dedos "apanhar" esses pensamentos.
    Obrigado

    Beijo

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  9. Muito intenso, e também realista! Concordo em pleno com o "Anónimo Luís" e com o Folha Seca.

    Você vai fazendo cada vez mais mal ao coitado do José... Tenho a fezada que é já no "Quanza" (não deveria ser "Kwanza"?) que ele vai parar a África e à guerra. E ainda tem tanto para nos contar!

    Sim senhora, continue. :)

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  10. José Piçarra.
    Pelo que pesquisei na net, é Quanza mesmo.
    Ele fica com a Maria, não vai sofrer mais do que ela.
    A verdadeira história do "Delírios" ainda não a estou a contar.
    Também gosto de ver o seu comentário no meu blogue.
    Beijo e as melhoras

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  11. E as escritas só melhoram. Não lhe falta tempo querida Carlota, lhe falta fé e pé firme.
    Daqui sai um livro e pronto.

    Ando Sara - lacho drom

    5 bjs floridos...os pontapés tem a ver com os auditores???só de leve???

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  12. Uma breve pausa para abrir as portas desse maravilhoso delírio.

    asden/ rromí zerafim

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  13. Carlota,
    A delirar mesmo com auditorias.
    Assim é que gosto de a ver.
    Bjs

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  14. Pelo menos, no Quanza, vai ter tempo para pôr as feridas em ordem, as nódoas negras em estágio e tentar entender o que lhe aconteceu...

    Boa viagem!

    Raul

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  15. Pergunta ( que me parece) lógica.
    Delira por causa da auditoria, ou é a auditoria que a pôem em delírio, Carlota?
    Beijinho

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  16. Minhas princesas Cozinheiras
    A imaginação sempre a funcionar. Lá nisso sou "mestre" e desde muito cedo. Lembro-me de ter escrito uma composição na 4ª classe (tinha eu 9 anos) que deixou a minha professora abismada, eheheheh.
    Também falta tempo.
    5 beijos floridos, estrelares, lunares.

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  17. Zerafim-contos de um anjo
    Seja bem vinda ao meu delírio.

    Nais tukê

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  18. Pedro.
    O que o strees não faz a uma pessoa?!! eheheheh

    Beijo

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  19. Bloggetrotter.
    Não sei muito bem o que irá passar no Quanza. Mas haverá uma surpresa, eheheh e mais não digo.
    Beijo

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  20. Carlos.
    É mais a auditoria que me coloca em delírio eheheheh
    Beijo Outonal

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  21. Estimada Comadre Carlota,
    Um conto ou uma realidade?
    Ao ler tão belo artigo fiquei com a sensação que estava sendo igualmente agredido, mas felizmente não, foram somente as suas belas letras que assim me fizeram pensar.
    Nunca passei por momentos desses, nunca consegui nenhum senhor da PIDE, o navio esse sim.
    Adorei e fico a aguardar o seguimento da emocionante estória.
    Abraço amigo deste ex-Inspector da PJ e Comandante da Marinha.

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  22. Caro Compadre.
    Como já referi, tudo o que aqui escrevo, seja o "Delírios" ou outro post, é tudo imaginação minha. Claro que este delírios, para quem viveu na época poderá ter vivido, ou ouvir falar. As únicas que pesquiso, neste caso, foi o nome do navio, não podia inventar um que não tivesse havido, alguns métodos de tortura, e olhe que havia bem pior.
    Mas como ex-inspector da PJ vou ter que ter cuidado consigo, eheheheheheheheh ainda me manda prender.
    Continuação de melhoras.
    14 beijos e abraços

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  23. Sem dúvida,que assusta um pouco.
    É tudo muito real menina Carlota.
    Arranjou maneira de despachar o José,sem o matar. Gostei. bj.

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  24. Anónimo.
    Não despachei o José.
    Não leu o "Delírios" com atenção.

    Beijo

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  25. Respondendo ao que disse,e recordando-me de que já tinha dito, que a verdadeira história ainda não tinha começado, concluí que era uma forma de o José sair de cena,a entrada forçada para o barco.
    Pelas suas respostas aos comentários, já vi que o José vai cotinuar.
    Obrigado pelo reparo menina Carlota. Bj.

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