quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Prados no Olhar - Colectânea Ocultos Buracos - Pastelaria Estúdios Editora

Naquele momento o sangue escorre pela minha boca como fogo queimando mais que a pele, ardendo mais que os anos passados. Um vermelho intenso, único. Esta é a minha natureza, dúbia, viva, morta, sempre à espreita de escolher entre o certo e o errado. Aos poucos, o corpo que se encontra junto a mim, vai perdendo o quente da vida.
A cada entardecer preparo-me para a saída triunfal. Não é uma situação que me deixe feliz. Por vezes a escolha é difícil, mas o meu “faro” é apuradíssimo a detectar doenças ou pequenas fragilidades humanas. Não posso colocar em risco a minha “saúde” se mordesse um humano doente.
Aconteceu uma única vez no início da minha vida noctívaga. A experiência não era muita na altura, e quando a sede chegava era uma luta constante até encontrar alimento. Valeu-me a ajuda do meu criador, Fausto, um ser belo, irresistível ao olhar feminino das humanas. 1,90m, cabelo grisalho (embora não fosse tão velho assim), corpo torneado pela prática desportiva. Não havia nenhuma mulher, humana ou vampírica que não o olhasse mais do que uma vez quando passava. Comigo foi diferente.
Naquela noite fiquei a terminar um relatório importante. Só dei pelas horas passarem quando o meu estômago reclamou. Arrumei a secretária e quando ia apagar as luzes, tive a sensação de estar a ser observada. “Só pode ser imaginação!”
Quando cheguei à rua, a brisa que se levantou no momento fez chegar até mim o cheiro a tosta mista. Havia um café ao fundo da rua, seria de lá o cheiro? Segui até lá. Não havia muita gente. Enquanto esperava o pedido, reparei em alguém sentado no fundo da sala, parecia alto, cabelo grisalho. Quando o nosso olhar se cruzou, ele sorriu e senti os meus lábios sorrir. “Como sorrir?! Eu não conhecia aquele homem!”.
Depois de ser atendida, saí o mais rápido que me foi possível. No caminho de volta para o carro, senti passos atrás de mim. Com receio não olhei, mas fui sentido, cada vez mais intensamente, uma presença “colada” a mim, e antes que me pudesse voltar, senti uma mão puxar por mim fortemente para trás e antes de desmaiar, fiquei com a sensação que estava a voar.
Não sei quanto tempo fiquei desmaiada, e ao acordar vi alguém sentado a meu lado, olhando-me de uma maneira fria, distante. Os seus olhos estavam tão negros.
“Nada temas!”
Era o homem que estava no café e que tinha sorrido para mim. Fiquei imóvel. Chegou-se mais perto, e a sua boca encostou-se serenamente perto do meu coração. Um beijo! Senti um beijo no meu peito. O coração bombeava o sangue rapidamente, o meu corpo escaldava. Sentia cada bombear ao segundo, ao milésimo até um pequeno rasgo ser feito e nesse momento a minha cabeça “explodiu”. Sentia o sangue a afluir ao pequeno rasgo feito na pele, abandonando o meu corpo, servindo de alimento aquele ser. Enfraquecia rapidamente e nesse momento mil pensamentos convergiam na minha cabeça e arfante consegui dizer: “-Nada temas!”
O homem ficou surpreso com o que disse. O seu olhar encontrou o meu, baixou a cabeça e envergonhado disse: “-Prometo cuidar de ti!”
Desmaiei e a partir daquele dia, a partir do meu novo acordar, a minha vida nunca mais foi a mesma. “Era uma vampira!” Fausto tinha-me transformado. Até então nenhuma das suas vítimas tinha sobrevivido. Ao longo dos anos fui aprendendo tudo o que seria possível para sobreviver com o meu Mestre. Mesmo num dos momentos mais drásticos para o mundo vampírico, tínhamos conseguido sobreviver graças à sua sabedoria.
Certo dia, um descuido meu colocou em risco a nossa sobrevivência. Ainda não conseguia controlar tão bem a minha sede, e o “faro” ainda não estava tão apurado. Mordi um humano doente, e quando me quis levantar não consegui. O sangue fervilhava dentro do meu corpo ferozmente, o doente ia atacando o meu organismo, ia morrendo aos poucos. Como se fosse possível uma morta-viva, morrer de novo! Passaram algumas horas até que Fausto me encontrasse e quando viu o meu estado, deu-me do seu sangue a beber. Quando os meus lábios entraram em contacto com a sua gélida pele, sugaram violentamente o seu sangue, deixando-o bastante debilitado. Quando acordei e vi o estado em que o tinha deixado, fui em seu auxílio. Cacei para o salvar. Éramos a dupla perfeita, tão perfeita que muita gente nos queria ver “mortos”. Uma emboscada afastou-nos para sempre. Fausto foi derrotado por Vicente o vampiro mais antigo e eu fiquei presa durante alguns anos até conseguir escapar. Agora vivia escondida dos humanos, escondida dos vampiros, desconfiando de tudo e todos. Por mais que me escondesse, por vezes encontrava vampiros prontos a acabar comigo.
Mais uma mudança de casa. A nova habitação fica na cave de um velho edifício. Não tem muito movimento e um banco de sangue perto, é uma mais valia. Quando o último turno acaba, e já não há ninguém no edifício, saio do meu esconderijo, vagueando pelos corredores vazios. Uma vez por outra “desvio” um pequeno saco de sangue. Aqui não há o perigo de adoecer sendo o sangue analisado. Abrir a arca frigorífica, escolher o grupo sanguíneo mais apetitoso, segurar o sangue fresco nas mãos, senti-lo escorrer pela boca é uma sensação maravilhosa. Tão maravilhosa como o facto de saber que não matei ninguém para o obter.
Uma noite mais.
O vento sopra forte fazendo a folhagem voar pelo ar, assobiando ao passar pelas fissuras das janelas e das portas. Percorro o parque da cidade, observando os poucos resistentes que ainda por ali andam.
Começo a sentir fome. O meu olfacto tenta decifrar o melhor alimento, mas esta noite é pouca a escolha.
Não muito longe da casa que me serve de abrigo, vejo que alguém me observa. Não consigo deixar de olhar para o meu observador, aquele olhar faz-me recordar o verde dos prados numa manhã de primavera. Pouco a pouco chegamos perto um do outro. Não sinto medo e “sinto” que do outro lado também não há. Vejo um sorriso e antes que tenha tempo de reagir, já dois “torpedos” (seres inimigos de humanos e vampiros) me seguram, enquanto o rapaz dos olhos verdes me injecta uma substância que começa pouco a pouco a lutar contra o meu organismo. Não estou a morrer, ainda, mas o meu corpo não reage a estímulos, nem ao meu pensamento. Ouço-os rir, um sorriso de vitória.
“- Conseguimos! Vingança!” Nenhuma das faces são familiar.
Após verem que não reajo, pegam em mim, atiram-me contra a parede, caindo o meu corpo desamparado no chão. Murros, pontapés, pequenos golpes de navalha, rasgam o meu corpo. Não sei que substância me injectou, apenas sei que me está a tornar humana? Sinto cada golpe desferido, os jorros de sangue salpicam o chão, a parede, inundam o meu olfacto, deixam-me moribunda.
“- Porque não me consigo defender? Sou uma vampira!”
“- Finalmente uma arma contra os vampiros. Agora é aguardar para ver o final.” – ouço-os dizer.
Já pouco de mim sinto. Os golpes são fortes, ou está enfraquecido o meu corpo? Não sei o que pensar, o que sentir. Nada mais há a fazer, quem quer que sejam, estão a matar-me.
“- Vem aí alguém. Vamos embora!” O campo de visão reduzido não me deixa visualizar o que se passa, o meu corpo não se mexe. Ouço-os correr em direcções opostas.
Algo soprou na minha direcção, alguém está a pegar-me ao colo. Quente! Sinto calor como já não sentia há muitos anos. Fecho os olhos, e demasiado fraca, desmaio.
Sangue! Sinto o cheiro de sangue. Por dentro, o meu corpo luta por sangue, uma luta interior, intensa, agoniante.
“- Eu sabia que existias! Se não me fizeres mal, eu ajudo-te!”
“ Como posso fazer mal, se não me mexo?!” – penso.
Uma mão percorre o meu corpo, tocando-me levemente. Acaricia a minha face, os meus olhos, os meus lábios. Sinto uma pequena pressão na minha boca, fazendo com que ela se entreabra. Pequenas gotas de sangue, escorrem pela minha boca, pela minha garganta, alimentando-me, fazendo-me viver a cada segundo passado. A fome é intensa, e após o primeiro saco, segue-se outro e mais outro, fazendo renascer o meu corpo, sarando feridas e golpes. Estou a sentir o meu corpo, de novo!
Subitamente levanto-me, e antes que o meu “salvador” se aperceba, salto para cima dele, derrubando-o contra o chão. Uma das minhas mãos está no seu pescoço e a outra prende uma das mãos, e as pernas entrelaçam as dele, imobilizando-o. Os seus olhos estão fechados.
“- Quem és?!”
“- Sou o novo analista. Chamo-me Gabriel.”
“- Foste tu quem me salvou?”
“- Não. Tu é que te salvas-te, eu só ajudei. Estava a passar quando te vi caída no chão, ferida e trouxe-te para o meu serviço.”
“- Sabes quem sou? Sabes o que sou?”
“- Sim, sei quem és, e o que és.”- pouco a pouco as minhas mãos soltavam-no.
“-Abre os olhos!” – as pálpebras entreabriram-se e o verde dos prados, sobressai de novo à minha frente. “-Tu!!” A minha ira, a minha raiva toma conta do meu corpo, da minha mente. Só penso em acabar com aquele “torpedo”.
“- Não sou quem pensas, espera!” A minha boca, os meus dentes encontram-se perto da jugular pulsante, bombeando o sangue que aguça cada vez mais o meu apetite, mas algo faz-me parar. Observo o ser à minha frente. Não tem nenhum corte, nenhum hematoma, a pele branca reluz sem nenhum sinal de luta, mas no corpo deitado por baixo do meu, algo chama a minha atenção. Por baixo, como se de uma cama se tratasse, está um aglomerado de penas negras, parecendo asas.
“- Quem és tu!?”- pergunto, levantando-me de seguida.
“- Não te quero fazer mal, simplesmente fui o isco para te apanhar, mas não podia deixar que “os torpedos” te matassem. Como te disse, chamo-me Gabriel e sou um Anjo Negro. De dia, analista, há noite, vagabundo do tempo. Foi numa das minhas saídas nocturnas que te conheci e desde esse dia que te observo sem dares conta. Sei que por vezes te abastecesses aqui na clínica, e que te sentes mal, triste, quando tens que matar alguém.”
“- Cala-te! Não sabes quem sou, nem me conheces o suficiente para falar.”
“- Na noite que foste mordida por Fausto, era eu quem te observava quando estavas no escritório. Desde aí tenho-te seguido. Perdi-te o rasto durante uns anos, mas quando te reencontrei nunca mais te deixei.”
“- E onde entram os “torpedos”?”
“- Certa noite vi-os perto da clínica, falavam de ti. Um deles segui-te e descobriu o teu esconderijo. Fiz-me amigo deles. Um dos dons dos anjos é fazer amigos depressa. Ouvi-os planear a tua emboscada e ofereci-me para ser o isco. Enquanto estavam distraídos contigo, reapareci como anjo para os assustar e o resto já tu sabes.”
“- E agora? Eles sabem onde estou.”
“- Eles pensam que morreste, consegui-os despistar para bem longe daqui. Basta que durante uns tempos não saias.”
“- Tenho que sair. Como me vou alimentar?”
“- Alimentas-te aqui na clínica. Já te perdi uma vez, não te quero perder de novo.”
Os olhos verdes sorriam para mim, Através deles “vi” os prados que um dia conheci com Fausto. Estava a ser hipnotizada por aquele olhar e pela segunda vez em toda a minha vida, estava a deixar.
Durante o dia mantinha-me escondida, praticamente como sempre tinha sido, e durante a noite deixava-me levar pela presença, pela beleza, pelas palavras de Gabriel. Estávamo-nos a descobrir mutuamente e teríamos toda a eternidade para o fazer e o melhor de tudo, nunca mais tinha morto ninguém para viver, para sobreviver.
Gabriel olhou para mim, sorriu e com as suas asas envolveu o meu corpo. Encostei a cabeça no seu tronco quente e ouvi o bater do seu coração bombeando o sangue veloz. A minha língua saboreou os meus lábios, estimulando o apetite por aquele sangue meloso. Os dentes saíram aguçados e suavemente penetraram a pele adocicada do anjo negro, deixando o sangue escorrer pela minha boca, alimentando-me.

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