quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O Anjo - Colectânea Corda Bamba - Pastelaria Estúdios Editora

Ao entardecer o nevoeiro vai descendo a encosta, cobrindo a cidade com um manto espesso. O vento sopra forte, fazendo rodopiar a folhagem que se encontra pelo chão.
Do alto de uma torre, alguém observa toda a atmosfera que envolve a cidade. O seu olhar observa para além do que o comum dos mortais consegue visualizar. Há séculos que aquela é a sua casa, aquela a sua cidade. Cidade que foi vendo ser construída a pouco e pouco. Um início tão diferente do que agora se apresenta. Aos poucos o betão foi ganhando terreno ao denso bosque. Dezenas, centenas, milhares de pessoas já passaram por si. Já o contemplaram, adoraram, idolatraram e até mesmo o odiaram.
Aquela era a sua sina. De dia uma estátua imóvel, fria, rude; de noite um anjo caído, um anjo que o único erro que cometeu foi o querer ser um comum mortal.
A angústia, o sofrimento de início, deu lugar a um coração vazio, a uma alma solitária. Quantas histórias de amor tinha visualizado, presenciado ao longo dos tempos. Quantos encontros, desencontros, amores, paixões, loucuras, traições, os seus olhos tinham visto, a sua alma sofrido.
Nunca soube o que era o amor. Nunca, nenhuma mulher, tinha feito o seu coração bater mais rápido, tinha conseguido transformar a gélida pedra em fogo ardendo de paixão.
O nevoeiro continuava a sua caminhada pela encosta. Não tardava muito para que a sua forma imóvel ganhasse vida e pudesse deambular sozinho pela cidade.
A poucos metros dali, um carro passa na rua.
“Não posso ir, compromissos inadiáveis!” – esta era a resposta que gostaria de ter dado à sua prima. Encontrar toda a família no fim de semana, não era propriamente agradável. Já estava a ouvir a tia Josefina e avó Teresa a papaguear: “Então o namorado?”, “Quando será a tua vez?” O acidente dos seus pais, anos antes, tinha sido o início desse afastamento.
Com estes pensamentos nem se tinha apercebido que tinha escurecido. Depois de passar na loja para comprar o vestido, seguiu viagem.
Olhou uma vez mais para o banco ao lado. Em cima do assento a caixa com o vestido acabado de comprar, que só iria usar no casamento da prima e teria o mesmo fim que os outros: armário.
Com tanta distração e pensamento com o vestido acabou por se perder.
Ao longe o céu iluminava-se em raios que rasgavam por entre as núvens negras. A chuva começou a cair cada vez mais forte. Não gostava de conduzir a chover, era melhor procurar um abrigo.
Uma luz ténue assinalava a entrada de um prédio. Não gostava muito de andar à chuva, mas não iria ficar dentro do carro à espera que a tormenta passasse. Abriu a porta e correu até à entrada do prédio. Era pouca a distância mas mesmo assim, ficou toda molhada.
A porta encontrava-se aberta. Entrou.
Era uma casa antiga. Um grande hall deixava ver uma escadaria em madeira trabalhada, lindíssima. À direita um pequeno corredor que tinha uma única porta ao fundo. À esquerda uma ampla janela que deixava ver o temporal lá fora.
“-Está aqui alguém?” a sua voz ressoou por toda a casa.
Ficou com receio de seguir. Voltou-se para sair, quando ouviu uma voz vinda do fundo do corredor, à sua direita.
“-Pode entrar, já aí vou.” Pareceu-lhe uma voz calma, que a sossegou.
Após as formalidades das marcações, uma senhora já de idade encaminhou-a ao quarto. Subiu as amplas escadas e seguiu à direita por um corredor escuro, cheio de pinturas, pouco iluminado. Engraçado, aquelas pinturas pareciam que a observavam. Deu por si a sorrir ao pensar em tal disparate.
Pararam defronte de uma porta larga.
“-Eis o seu quarto, menina!”
“-Obrigado!”
“-Se precisar algo, é só tocar a campainha.” e foi embora.
Depois da porta se fechar, olhou em volta para o quarto. Uma cama no meio do quarto, com um dossel, um tocador à sua esquerda, com um espelho trabalhado, ao lado um grande armário. À sua direita uma enorme janela que dava para um terraço.
Depois de colocar a pequena mala em cima da cama, chegou-se perto da janela. Tinha deixado de chover. Abriu as vidraças. Uma aragem fresca entrou pelo quarto. Seguiu até ao parapeito e observou a vista dislumbrante que dali se contemplava. Mesmo de noite escura, a vista era magnífica. Deixou-se ficar, sem dar pelos minutos passarem.
Quando se voltava para entrar de novo no quarto, viu uma estátua de pedra. Chegou-se um pouco para a examinar, A sua mão tocou numa textura rugosa, gélida. Naquele momento o seu coração bateu fortemente. A textura rugosa pareceu-lhe que tinha ficado lisa. “Que loucura!”
Voltou-se, entrou no quarto e fechou as vidraças, deixando o pouco luar que teimava aparecer por detrás das nuvens entrar pelo soalho até à cama.
“Quem é esta rapariga? Porque me tocou no momento em que o meu corpo começou a sua transformação?” Deixou-se ficar sossegado, até sentir que ela dormia.
Passaram alguns minutos.
As nuvens estavam mais dissipadas, deixando um mágico luar inundar a noite.
Entrou no quarto tentando não fazer barulho.
Na sua cama dormia uma jovem que não sabia quem era. Uma jovem que tinha teimado em lhe tocar. Um toque que nunca tinha sentido. Um toque que tinha feito o seu duro coração, derreter.
Sentou-se na beira da cama, contemplando a jovem. A pequena almofada encontrava-se desenhada por um farto cabelo ondulado.
Suavemente a sua mão desenhou no ar o contorno da cabeça, passando pelo pescoço, descendo pelo corpo. Um perfume exalava do seu corpo, inebriando o seu ser, o seu corpo angelical. “Quem é esta mulher?” Fechou os olhos e visualizou todos os séculos da sua vida, tentando encontrar perdido no tempo, alguma presença daquela mulher na sua vida. Nada. Nunca nenhuma mulher lhe tinha tocado no momento da sua transformação. Na sua forma de pedra já tinha sido tocado tanta vez, no entanto na sua forma humana nunca se tinha deixado ser visto por ninguém. Quem iria tocar-lhe tendo ele asas?
Com todos estes pensamentos, nem deu por Orquídea (assim se chamava a jovem) ter acordado, estar sentada na cama a vislumbrá-lo. Nunca tinha visto ninguém assim. O tronco nu deixava ver nas costas umas asas fechadas que as tapavam. Parecia alto, magro. Só podia ser a imagem de pedra que estava na rua. Olhou para o sítio onde a tinha visto a última vez e não estava lá.
Quando olhou em frente, os seus olhos encontraram os do seu Anjo.
Estavam os dois assustados, não pelo medo, mas pela surpresa daquele encontro.
O Anjo levantou-se e ia a sair, quando Orquídea lhe pegou na mão.
“-Não vás!”
Orquídea levantou-se e ficou mais perto do Anjo.
As suas mãos continuavam unidas, entrelaçadas. O encontro do seu olhar tocou fundo o coração de cada um. Um pequeno abraço uniu os seus corpos.
Olharam-se de novo. Suavemente os seus lábios tocaram-se, como se não soubessem o que fazer a seguir. As suas mãos tatearam os seus corpos, descobrindo-se mutuamente. O receio inicial foi dando lugar à paixão ardente que os seus corpos exalavam.
O Anjo aconchegou Orquídea junto a si e as suas asas tocaram o seu corpo despido. Os seus lábios exploraram cada pedaço do seu corpo. Orquídea tocava o corpo angelical, escaldando de desejo, de paixão.
Entre beijos e carícias suaves, os dois corpos uniram-se num só. Nesse momento os seus olhares encontraram-se e em pensamento disseram “Amo-te”.
O luar foi testemunha de uma noite de paixão.
Quando a manhã chegou, Orquídea encontrava-se sozinha na cama. Teria sonhado?
Levantou-se e correu até à janela. Lá fora, a estátua de pedra angelical, continuava no mesmo sítio. “Foi real! Eu sei que foi real!”
Depois de se arranjar, desceu as escadas e saiu.
Ao entrar no carro, olhou para o embrulho no assento ao seu lado e em cima dele encontrou uma pena. Sorriu e seguiu viagem.
À noite quando entrou no seu quarto, o Anjo encontrou um pequeno bilhete em cima da cama:
“Agora que te encontrei, nunca mais te irei deixar.
Eternamente tua.
Orquídea”
Sorriu e disse baixinho: “Ad' tejavel”

1 comentário:

  1. u lala...que romântico, quem não quereria ter um encontro magico como este!?

    gostei.beijinho. Mané

    ResponderEliminar