sexta-feira, 1 de junho de 2012

O Verão da minha Infância


Que sensação estranha ao acordar.
Como que por magia, a responsabilidade, a pressa, a pressão do trabalho, passaram.
A vontade de correr, pular, gritar, rodopiar, subir às árvores, enfim, brincar, voltou!
O cheiro das giestas que circundam Portalegre, dos malmequeres, das papoilas já não me fazem mal.
Visto uma roupa qualquer e saío para a rua. O tanque de lavar roupa, no quintal da avó está cheio de água. Mergulho os meus braços nele, chegando a água quase ao pescoço, eheh, molhei as mangas da t-shirt, aiai. Não faz mal, enxuga ao ar. Vejo o meu rosto no reflexo da água, sorrio, os meus olhos sorriem.
Subo as escadas e corro pela rua abaixo aos pontapés às pedras, a passar as mãos pelas paredes caiadas de branco. "Carla, não faças isso que sujas as paredes às vizinhas!" - parece que ouço a minha avó gritar ao longe.
Perto da casa do sr. Salgueiro, páro. Tenho medo dos cães que por vezes ali andam e que já correram atrás de mim dezenas de vezes. O quintal da vizinha Domingas, mais propriamente a terra perto das roseiras tem sido a minha safa, quando ao fugir deles lá aterro. Nenhum! Podemos seguir!
Chego perto da casa da Adélia. A porta aberta de par em par para deixar entrar o fresco da manhã. Cheira a sabão da roupa lavada que se encontra no alguidar para estender. Entro.
-Bom dia!
-Olha a Carlota Pires Dacosta! Logo de manhã, por aqui? (Agora já sabem de onde vem o nome)
-Vou brincar para o adro.
-Queres pão com manteiga?
-Sim pode ser. E com açucar também!
Hum, que vontade de comer pão com manteiga e açucar, neste momento. Cada dentada no pão, lambuça a minha boca de manteiga, que tento lamber até ao último pedaço.
Sorrio e volto de novo ao meu caminho.
Se a avó sabe que comi, de novo na casa da Adélia, ralha comigo. Mas não faz mal, eu como lá todos os dias e ela muitas vezes não sabe, pois a Adélia é minha amiga e já me disse que não lhe conta. O pior é a vizinha, a Diamantina que tem o quintal que dá para casa da minha avó. Quando sabe que estou na casa da Adélia, está sempre a gritar para a minha avó: "Oh Zé, a tua neta está de novo a comer na casa da Adélia!"- Não gosto da Diamantina, tem ar de bruxa, e deve ser mesmo, pois quando os nossos olhos se encontram fico doente, por isso fujo dela.
O adro da igreja da Senhora Santa Ana.
Dois terraços em terra batida com oliveiras, dois muros - o primeiro circunda a igreja e um mais largo que circunda este e que dá para a estrada, com uma altura de três metros.
A avó diz que é perigoso, mas eu gosto de brincar ali. Dá para jogar à bola, ao berlinde, fazer casinhas, subir às árvores, ou simplesmente estar sentada a ver quem passa, ou olhar lá longe a Serra da Penha, a Igreja da Sé, a Estação, ou o horizonte a perder de vista.
Subo para a minha "nave" e hoje é dia de defender a minha tripulação. Só acabo a "minha" guerra quando ouço a minha avó a chamar-me. Salto para o chão e corro até casa. Subo o muro que passa pela horta da Igreja e corro até uma encosta que me leva perto de casa. Quando a avó chama, é para ir rápido, por isso vou a corta-mato.
-Vou à cidade, queres vir?
A "cidade" fica a 200metros do sítio onde me encontro, mas a escassez de casas nesse caminho faz parecer que estou looonge da cidade.
Depressa lavo a cara, as mãos, penteio-me, visto outra camisa e lá vou eu.Ai, os livros da biblioteca! Pego na sacola e lá vou eu com a minha avó. Sinto-me importante quando vou com a minha avó à cidade. Ela conhece toda a gente, e toda a gente me fala também. Mas acompanhar a minha avó parece uma corrida de Fórmula 1, ela não anda, ela voa.
Passamos pela Câmara Municipal. Vou ver se o meu avô lá está para lhe dar um beijinho. Quando lá vou, falo também aos colegas dele.
-Aqui vem a minha Carla com os seus livros. Gosta muito de ler. Um dia, ainda escreve um livro! Tem mãos de habilidosa, dedos esguios. - e lá mostro eu, pela milésima vez as mãos. "Que sorte tê-las lavado!"
Quando dali saío, sigo para a biblioteca. Hoje não devo demorar muito, a D. Emília já me guardou o livro que quero. Não devia ser assim, mas ela guarda-me alguns livros que sabe que gosto, pois sabe que os trato sempre bem e por isso me faz estes miminhos.
O caminho para casa já é feito com a sacola dos livros a tira colo e os sacos das compras nas mãos. A avó não carrega muito os sacos, mas eu gosto de a ajudar.
Já não penso em mais nada a não ser, estar deitada, debaixo da videira, sentir o sol passar por entre as folhas, um copo de groselha ao meu lado para ir bebendo, ou uma taça de cerejas, e deixar a minha imaginação voar com a heroína da história.
Quando está mais calor, às vezes deixo-me dormir a ler o livro. Acordo quando tem que ser ou com alguma formiga a picar-me.
Quando a noite chega, já tenho o livro lido. Estou cansada!
Já deitada, sinto o calor entrar pela janela, os grilos a cantar, o céu estrelado e fecho os olhos.
Que bom ser criança, de novo!!


Esta história faz parte do passatempo do blog "A Turista Acidental".
Serve também para lembrar mais um Dia da Criança. A criança que eu fui, o recordar um dos muitos dias da minha infância, dos muitos dias de Verão que passava em casa, em Portalegre.

14 comentários:

  1. E começa com um texto excelente, Carlota.
    Enquanto lia, lembrei-me várias vezes de um texto que escreveu para o CR,sobre as praias da minha vida. Lembra-se?
    Beijo e bom fds

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  2. Gostei muito de ler! Um passatempo muito interessante.
    Bom fim de semana, Carlota. : )

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  3. Carlos.
    Claro que me lembro desse texto. Este também tem um pouco dessa praia. É a minha infância, a qual não trocava por nada neste mundo.
    Gostei de ser assim, de viver assim. Graças a isso, sou a mulher que sou hoje.
    Obrigado.
    Beijo Primaveril

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  4. Carlota
    Lindo tal como a praia da tua vida no CR!
    Adorei a tua estória!
    Já me tinhas dito no FB porque eras Carlota, só não sabia que vinha de uma Adélia.Heheh
    Sabes que ao ler recordei certas coisas que também eu fazia, tais como enfiar os braços no tanque da água e ver o meu rosto nela, fazia caretas.
    Que bom que era se todo mundo sentisse em si um pouco da criança que foi outrora.

    Beijinho e uma flor

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  5. Que bom que era menina Carlota. Faz-nos muito bem recordar os dias maravilhosos da nossa infância. Estava pegado ás suas palavras, "imaginando" a traquinas que a menina devia de ser...Adorei menina Carlota.

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  6. Catarina.
    Um passatempo ao qual me estou a dedicar a 100%. Gosto de desafios e vêm muitos até ao final do mês.
    Beijo

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  7. Minha Bela Flor.
    Tive uma infância da qual não mudaria nada. Gostei de ser a criança que fui.
    Não foi rica em termos de dinheiro e oportunidades que outros tinham, mas a minha imaginação fez-me a mais rica de todas.
    Beijo

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  8. Memórias muito ternas, Carlota.
    Que não se esquecem pela vida fora!
    Beijo

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  9. Pedro.
    Memórias que fazem parte de mim.
    Beijo

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  10. Obrigado Carlota
    Obrigado por fazeres com que recordasse os meus tempos de criança. Um pouco parecido com os teus....Fechei os olhos e deixei-me levar pelas tuas palavras pelos meus pensamentos.
    Uma vez mais obrigado e parabens por mais um belissimo post

    Bj

    Luis

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  11. Querida Carlota, já passei por mais de uma centena de blogs e li em todos eles os textos dos Verões da sua infância! No entanto, nenhum até agora é tão vivido, completo, poético, quanto o teu!
    O teu avô tinha razão: esta menina um dia vai escrever um livro!
    Beijinhos. :)

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  12. Anónimo Luís.
    Acho que todos nós temos memórias lindas da nossa infância. E quando alguem se lembra de escrever sobre elas, inconscientemente lembramo-nos na nossa.
    Eu é que agradeço a tua visita.
    Beijo

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  13. Querida Manuela.
    É a minha maneira de escrever.
    Obrigado por ter gostado.
    Quanto ao avô só tenho pena, se um dia escrever um livro ele não chegue a ver.
    Beijo

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