terça-feira, 12 de julho de 2011

Um Delírio XVI

Woman in a Boat - Renoir 1867




(continuação)


À minha frente encontra-se o rosto que me fez viver. O rosto pelo qual eu prometi a mim mesmo que iria conhecer.

Sempre pensei que seria o rosto de um filho meu, de uma filha à muito desejada, quem sabe com a moça dos aerogramas.

Tantas vezes que me deitara a pensar, falar com aquela criança. Aos poucos fui-me "apaixonando". Era a minha confidente das alegrias, das tristezas, das perdas, dos sonhos, dos desejos.

Nas noites mais tenebrosas de conflito, sentia que algo me dizia o que fazer, como fazer, onde me esconder, quando disparar. Era aquele olhar que via, quando fechava os olhos.

Por cada camarada perdido, por cada dor sofrida, por cada pesadelo era por aquele olhar que queria viver.

Mesmo ao chegar a Portugal, a perda que tinha sofrido com a moça dos aerogramas, foi compensada pelo rosto.

E, agora estava de volta a casa, à terra das minhas gentes e ali estava o rosto, o corpo. O corpo de uma criança que não deveria ter mais do que 10, 11 anos. Fiquei confuso.

Como pode aquele rosto estar ali? Era o rosto da minha filha!

Senti o chão fugir. Caí. E essa queda foi muito dolorosa de sentir. Era impensável o que estava a acontecer. Quem seria aquela criança? Sempre era uma criança que eu via. Mas não era minha filha. E já lhe tinha um amor tão grande. Mas ela existe!

"- Não te asustes! Não te quero fazer mal."

Como poderei um dia chegar perto, se ela foge com medo?

O meu olhar foi ao chão. Perto onde ela estava, estava uma sacola. Fugiu com medo e esqueceu-se da sacola. E agora, como a encontro para lhe a entregar?

Fui andando até à casa de meus pais.

Os meus pensamentos estavam a passar tão rápido por mim, que não os estava a conseguir ordenar. " O rosto não é da minha filha! O rosto é de uma criança da minha aldeia! Como será possível eu conhecer esse rosto? Porque? Porque? Quem?" Queria fugir dali. Os meus pés levavam-me por caminhos que o meu corpo não conhecia.

Debaixo de uma laranjeira, estava a menina que vira antes.

Tinha que ir ter com ela, saber quem era.

Ao chegar perto reparei que tinha os olhos fechados, parecia que estava a dormir.

Ao sentir os meus passos, abriu os olhos. Aqueles olhos lindíssimos que tanta vez imaginara. Estavam assustados! Eu estava a assustar a minha menina!

"-Olá! À pouco, deixaste a sacola perto do riacho." tentei fazer o meu melhor sorriso para não a assustar.


(continua)

6 comentários:

  1. Bravo ... eita coraçãozinho mole. Vais conseguir, um sorriso muda o mundo e roda a terra em outra direção.

    bjs - 5

    ResponderEliminar
  2. Cozinha dos Vurdóns.
    Um coração mole, que derrete muito facilmente. Mas também pode ficar tão duro, tão duro como uma pedra.

    Um sorriso faz toda a diferença, capaz de mudar o mundo e o coração mais duro do mundo.

    Cintilante pelo escuro céu, viajam 5 beijos para as estrelas no outro lado do Atlântico.

    ResponderEliminar
  3. Carlota querida
    Adorei teu texto.
    Mas se me permites assino por baixo do teu comentário a "Cozinha dos Vurdóns"
    Beijinho

    ResponderEliminar
  4. Flor de Jasmim.
    O Delírios tem estado a sair ao sabor do vento, e agora está por aqui uma ventania...

    Claro que permito a assinatura ao comentário da "Cozinha dos Vurdóns".

    Beijinhos para si, família e para o sr. Folha Seca...

    ResponderEliminar
  5. Continuo a seguir o delírio com atenção.

    ResponderEliminar
  6. Pedro.
    Obrigado pelo "seguimento".

    Um abraço!!

    ResponderEliminar