quinta-feira, 7 de julho de 2011

Um Delírio XV

Galatea de las Esferas - Salvador Dalí
(1952)


(continuação)

"José"

Nos últimos dias tinha reparado que Maria não estava bem. Mesmo com os miúdos andava um pouco mais irritada. O dia a dia da casa, os míudos, deixavam-lhe pouco tempo para si. Mesmo a leitura de que gostava muito era feita pelas altas horas da madrugada. Continuava linda como no dia em que tinham casado e nem o nascimento dos três filhos lhe tinha retirado a figura esbelta de outros tempos.
Sabia que a enorme diferença de idades tinha sido um obstáculo no início, mas com o tempo foram sabendo contornar essa diferença.
Ainda se recorda do primeiro dia em que a tinha visto. Tinha chegado de África à poucos dias. A guerra tinha destruído tudo de bom que existia. Agora só pensava em regressar a casa, para junto de seus pais e tentar ser feliz. Como se isso fosse possível, depois de tudo o que tinha passado, visto e vivido.
Durante a guerra e na altura em que os confrontos eram mais intensos, fechava os olhos e via um riacho, via uma carinha a olhar para si, um rosto de criança. E era aquele rosto, a tentativa de um dia o ver realmente que o fazia acreditar que iria sair dali com vida. Que iria voltar à terra. Sempre pensou que aquele rosto, seria o rosto de um filho seu.
Vira tantos camaradas seus sucumbir mesmo ao seu lado. Alguns ficavam ali, assim, sós, abandonados. Poder-se-ia voltar mais tarde para os conseguir sepultar . Outros ainda dava tempo de os levar, para serem entregues às famílias em Portugal.
Durantes anos o martírio da guerra ofuscou a sua alegria, a sua vida, a sua alma. Aos poucos sentiu morrer o seu interior.
Chegou a Portugal. E esse Portugal que deixara anos antes, não era o mesmo que encontrava.
Durante algum tempo tinha trocado alguns aerogramas com uma moça. Era ela que fazia a ligação entre o Portugal que conhecera e que queria lembrar naquela região árida, bárbara.
Pensava que seria ela a mãe dos seus filhos, a mãe daquela carinha que para si olhava perto do riacho.
Que tolo, que parvo ao pensar que ela estaria à sua espera. De facto, até estava, mas acompanhada pelo respectivo namorado que, vim a saber que era muitas vezes quem ditava o que ela escrevia, e eu a pensar que estaria à minha espera.
Decidi ir para a terra o mais rápido que pudesse. Queria refugiar-me. Refugiar-me nos campos que conhecia, nas gentes que conhecia, na terra, na noite, no ar, no cheiro da minha juventude.
A viagem na camioneta era cansativa, mas naquele dia "bebia" todas as paisagens, todas as searas, todas as árvores, todos os caminhos que me levavam a casa.
Saí um pouco antes, e fiz o resto do caminho a pé.
Ouvi o riacho a correr e encaminhei-me para uma das várias entradas que tinha. Parecia mais belo do que noutros tempos. Estava ali o riacho dos meus sonhos, dos meus desejos.
As lágrimas teimaram em sair descontroladamente. Era ali! Estava ali! Em casa. Finalmente em casa. Só faltava o rosto.
Ouvi uns passos e voltei-me!
Pelo mesmo caminho por onde tinha vindo, caminhava uma menina.
Quando os nossos olhos se encontraram, vi o rosto com o qual tantas vezes sonhara.
Ela existe! Ela existe!
(continua)

18 comentários:

  1. Parece brincadeira, o quadro de Dali tem tudo a ver com o rosto da menina, com a angústia de chegar em casa e aos cheiros para se ver inteira de novo. Dava pra te darem uma folga e você escrever umas 10 páginas, quando termino de ler, fico olhando e pensando ... cadê o resto. Sei que é ao sabor do vento ... queria ventania.

    5 bjs das estrelas tuas que aguardam, quase que pairando sob o céu escuro.

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  2. Cozinha dos Vurdóns.
    As férias virão no final do mês, pode ser que nessa altura dê para escrever mais do que 10 páginas, eheheheh.

    Eu gosto de deixar no suspense. O que se seguirá??
    Vamos aguardar.

    5 beijos para as minhas estrelas que brilham no céu.

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  3. Carlota querida
    Comovente!!! esta ultima parte mexeu demais comigo. Amei.
    Beijinho

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  4. Flor do Jasmim.
    Fico sempre feliz por ver uma presença sua no meu espaço.

    Um abraço carinhoso!!!

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  5. Estimada Comadre Carlota,
    Terei que tirar um tempinho para ir ler o início desta bela estória, que estou acompanhando com muito interesse.
    O capítulo de hoje me deixou preplexo, como tal terei que enquadrar o episódio.
    Adoro orquídeas, até uma das minhas filhas seu nome é CATALYA.
    Abraço amigo

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  6. Caro Compadre!
    É fácil enquadrar este capítulo. Mas pode reler tudo de novo ehehehe.
    Orquídeas são as minhas flores preferidas. Daí o nome do blogue.
    A Carlota vem de pequenina, pois uma vizinha da minha avó era assim "Carlota Pires Dacosta" que me chamava e sempre pensei que se algum dia, fizesse algo dedicado à escrita era esse o nome que figurava, pois como o meu amigo sabe este não é o meu nome. Já viu no mail, ehehehehehe

    Três abraços e um especial para a Catalya, e para as restantes filhas, senão fica tudo com ciúmes.

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  7. oi. tudo blz? estive por aqui. muito legal. apareça por la. abraços.

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  8. Um Brasileiro, obrigado pela sua visita.

    Já o visitei também!!!
    Um abraço!!

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  9. Meu querido amigo Manuel, muito obrigado pela sua visita.

    A história do sr. Meireles será a seguir, Não me esqueci do que falámos cá em Portalegre.

    Um beijo.
    Outro para a minha grande Amiga MJ

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  10. Delírio e êxtase.
    Belas palavras, minha amiga!

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  11. Perdi uma data de delírios.
    Mas estou a gostar muito deste, Carlota.

    P.S. Recebi a anedota. Maravilha!!!

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  12. Eduardo.
    Obrigado pela sua visita.
    O "Delírio" está um delírio.

    Um abraço!

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  13. Pedro.
    Já sei que o sítio escolhido para as férias não foi o melhor, mas a companhia foi a ideal, não foi??

    Não perdeu muitos delírios, mas convêm ter a história em dia, eheheh.

    Um abraço!!

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  14. Estimada Comadre Carlota,
    Estes seus maravilhosos capítulos desta estória, bem imaginada, me criam um estímulo de saguidade em querer saber o total da estória que vou acompanhando apaixonadamente.
    Adorei mais este belo capítulo e repito, deveria pensar em escrever um romance e publicar, já que o argumento daria até um óptimo filme.
    Abraço amigo

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  15. Caro Mar do Poeta, este Delírio tem surgido assim: hoje não sei o que escrever amanhã, saí tudo no momento. Tenho o final decidido, como lá chegar é que não.

    Já imprimi tudo o que está escrito e estou a rescrever tudo mais elaborado, pois como é tudo no momento, há algumas pequenas incorrecções.
    Aguardemos.

    13 abraços do ocidente!!
    (espero que esteja a distribuí-los) eheheh

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  16. Tem sempre maneira de não deixar duvidas nos leitores menina.
    Os capítulos cruzam-se muito bem uns com os outros.
    "Encontro no riacho, tristeza, lágrimas, o rosto da Maria, desabafo do José, é ela". Tudo isto uns capítulos atrás, e que nos esclarece
    agora. Gostei.

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