Carlos Botelho - 1935
(Lisboa e o Tejo - Domingo)
(continuação)
Não devo ter dormido mais do que 2, 3 horas. O meu pensamento encontrava sempre o mesmo ser, a mesma pessoa. Aquela pessoa que queria esquecer que existia. Aquela que feriu a minha alma, deixou o meu ser a sangrar.
Encontrava-me em Lisboa. Lisboa, a capital que nunca tinha conhecido a não ser pelo jornal da aldeia e a qual tanto me assustava pelo seu viver, pelo seu costume. E, aqui, estava eu! Sozinho, em Lisboa. A dormir numa cama que não sei a quem pertencia, numa casa, com gente que não conhecia.
Mas tudo isto era preferível ao desgosto.
Ouvi uns passos apressados na rua. Uma porta abriu e fechou-se repentinamente. Vozes a falar em sussurro. Parecia alguém a discutir, mas sem fazer barulho.
"-Já disse que vou, mano! Já me inscrevi!"
"-Irás dar um desgosto à nossa mãe." - esta voz eu conhecia. O amigo que me convidou a entrar nesta casa. Estaria a discutir com quem?
"-Ires assim, para o meio da guerra!?"
"-Não serei a única, mano. Será a minha contribuição a ajudar quem mais precisa."
"-Na guerra? Em África? E para onde irás?"
"-Para onde me enviarem."
Estava tão envolvido pela conversa que nem dei que ao encostar-me a porta ela se abriu e dei por mim, no meio da cozinha com o meu amigo, e uma bonita rapariga. A mais bela que tinha visto até então.
"-Peço desculpa por o termos acordado."
"-Quem és este? A mãe continua a dar guarita a todos os vadios que encontra na rua? Não vos disse para não trazerem ninguém para casa, hoje em dia não se pode confiar em ninguém."
"- Peço desculpa por vir incomodar a vossa conversa. Eu sou de confiança, menina."
"-Também os outros eram, e passado algumas horas lá íamos fazer nova visita ao Aljube."
"-Chega Ana Maria!"- soou a voz forte da dona casa. "- Vai-te deitar! Falamos mais logo! Vão-se todos deitar, ainda é cedo!"
Embora a vontade não fosse muita, todos atenderam à ordem dada.
Voltei a entrar no quarto sombrio, e agora os meus pensamentos estavam no Aljube.
"O que seria? Teria alguma coisa a ver com o que a sr.ª lhe tinha dito?" e com estes pensamentos voltou a adormecer.
Quando acordou já o dia ia alto. Ouvia o tilintar de pratos e copos na casa ao lado.
Ao abrir a porta, deu de caras com a Ana Maria. Pelo menos tinha ficado a saber o seu nome.
"-Bom dia!"
"-Ainda cá estás?" - perguntou com desprezo, zanga. O que muito me entristeceu.
"-Não se preocupe, mesmo hoje ao final da tarde me irei embora." - respondi com tristeza.
Observava a sua esbelta figura, enquanto punha a mesa. Os cabelos loiros,compridos, ondulados, pareciam cachos de uvas, o olhar esverdeado pareciam duas safiras que nos cortavam até a alma, o peito formoso delineava até uma cintura esguia, à qual se copulava uma anca torneada, que faria sonhar qualquer homem. Uma mulher lindíssima!
"-Para onde estás a olhar, parvalhão?"
"-Peço desculpa, mil perdões, não era minha intenção!"
"-De novo a discutir, Ana Maria?"
"-Mãe, ele estava a olhar para mim."
"-Minha senhora, foi sem intenção. Sem intenção de ofender, mas realmente nunca vi mulher tão bonita como a sua filha."
Fiquei tão envergonhado, tão atrapalhado que as duas riram-se na minha cara.
"-Não se preocupe, a minha Ana Maria já está habituada a esses olhares. Realmente é uma mulher muito linda. Muito parecida com o meu falecido."
"-Mãe, chorar agora, não!"
"-Não, senhora, não chore, não fiz por mal"
"-A minha Ana Maria é a recordação mais bonita que tenho do meu falecido marido. Por ela tenho mantido esta vida, para ela conseguir trabalhar no hospital. Sabe é enfermeira há uma ano. O meu orgulho, e o do irmão também!"
"-Mãe, de novo não!"
"-Não. Não vou chorar! E o José para onde vai?"
"-Não sei ainda. Cheguei ontem a Lisboa, não conheço nada."
"-Não seja esse o problema. A Ana Maria está de folga, hoje vai levá-lo a conhecer Lisboa."
"-Mãe!!"
"-É uma ordem!"
Quando dou por mim estava a acompanhar Ana Maria pelas ruas de Lisboa. Não vi nada. O meu olhar, a minha atenção estava toda centrada naquele corpo torneado.
Sentámo-nos um pouco à beira rio.
"-Então o que o trás por Lisboa?"
"-Desgostos, menina Ana. Mas prefiro não falar disso, se não se importa."
"-Claro que não. Não quero ouvir desgraças alheias. Para isso já me chegam as dos doentes no hospital."
"-É verdade, é enfermeira. Gosta?"
"-É claro que gosto. Tudo o que sempre sonhei. E estou perto de concretizar o meu grande sonho."
"-Sonho?"
"-Sim, ser enfermeira em África. Estar perto dos nossos combatentes, dos nossos heróis da guerra." - o seu olhar brilhava ao falar de África, da guerra, dos combatentes.
Levei a tarde toda a ouvi-la falar. Por vezes sorria, acenava com a cabeça ou encolhia os ombros. A palavra era da Ana Maria. Aos poucos dei por mim a querer conhecer um pouco mais do mundo da guerra, do que haveria em África. Contou-me que era madrinha de guerra de alguns combatentes, e que tinha sido essa correspondência com eles que a estava a puxar para o continente africano.
Ela sorria ao falar, e aquela imagem, aquele sorriso fez-me tão bem. A minha alma, o meu ser já não estava triste, dorido, ferido.
"-Mas o que é preciso fazer para ir contigo?" - perguntei a medo.
"-Ires comigo? Para África? "
"-Sim."
Ouvi a sua gargalhada que repentinamente se calou. O seu olhar agora, mostrava medo, raiva. Colocou-se de pé e a sua voz um pouco embargada apenas conseguiu dizer. "Foge!"
Quando dei por mim, já dois matulões me seguravam os braços, um terceiro deu-me um soco nas têmporas que me deixou um pouco atordoado. Vi outros dois segurarem a Ana Maria e quando tentava soltar-me, levei um segundo soco e senti o meu corpo desfalecer.
(continua)